quinta-feira, 15 de maio de 2008

Rumo a Meca

Há muito tempo eu não ia ao teatro e, ao final do espetáculo, sentia algo que não me deixava ir embora. Como é raro, e bom, sentir a verdadeira catarse. Ontem, senti. Tudo isso. E revivi minha escolha por fazer teatro.
Fui assistir ao “O Caminho Para Meca”, do dramaturgo sul-africano Athol Fugard, direção de Yara de Novaes, que tem no papel de Helen Martins a incrível e apaixonante Cleyde Yáconis.
O espetáculo é brilhante e iluminado, em todos os sentidos. O texto é rico, a encenação é do tamanho exato, nem maior, nem menor do que a história demanda. Mas o mais extraordinário é poder compartilhar com a grande atriz, sua alegria por estar ali, sob nossos olhos. E, principalmente, sua inteireza. Não poderia existir união mais perfeita entre texto e atriz, naquele momento. Cleyde Yáconis, certamente, vem construindo sua Meca ao longo destes anos e, para nosso deleite, ainda não terminou.
Aquela história me preencheu de amor e de forças para persistir em meu caminho. E focou novamente meu olhar que, por conta da contemporaneidade em que vivemos, perde muitas vezes seu objetivo primordial. Me centrou. Me enriqueceu. Me trouxe de volta a mim mesmo.
E tudo o que já escrevi sobre a verdade, tudo o que já li sobre a individuação e tudo o que já filosofei sobre a plenitude fizeram-se concretos em meu espírito na noite de ontem.
Entrei no teatro com fome, e saí apaixonado.
Ver de perto as lágrimas no rosto da grande atriz ao agradecer pelos aplausos de seu público, foi sublime. E o público era pequeno. O teatro, quase vazio, numa sexta-feira paulistana de muito frio e muito trânsito. E é somente desta forma que se reconhece a verdade em ser uma “grande diva do teatro”. Aquilo, foi teatro.
Sinto-me forte, apesar de ainda caminhar em terreno escorregadiço, e levar meus tombos vez ou outra. Sinto-me, ao menos, um pouco mais capaz de discernir sobre meu destino, sobre meu papel, sobre a minha Meca, que aos poucos construo. Sinto-me calmo. Ela se fará aos poucos. E cada caco será o todo em si. Sinto-me crente, em mim mesmo, nos personagens com os quais brinco vida afora. Sinto-me, hoje. E espero que ainda, amanhã.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Festival de Scarpans

Pretos, quase todos.
Saltos, do mesmo tamanho.
Alguns apontavam para cima, outros para baixo.
Chacoalhavam, todos.
Uns tocavam o chão, uns bicavam o ar.
Alguns trocavam de posição.
E muitos machucavam o calcanhar.
Olhavam para o lado
Comparavam-se.
Toc, toc, toc.
Vamos sair nas fotos?
Girinho para a esquerda
Girinho para a direita.
Vamos andar nas passarelas?
Chacoalhavam, chacoalhavam.
Deixa eu ver os seu?
Uma briga de galos.
Deixa eu ver o seu?
Bicudos!
Bicudos!
Uns brilhosos, outros foscos.
Uns novos, uns só parecendo.
Toc, toc, toc.
Quantos risos nervosos.
Se olhavam.
Não sabiam se eram eles próprios, ou se eram os que estavam ao lado.
Chacoalhavam, chacoalhavam.
Sabiam, de tudo, no fundo, sabiam.
Quando o couro sintético se enrugasse
Quando não houvesse mais graxa para maquiá-los.
Quando os calcanhares não mais os agüentassem.
Seriam despejados, na sarjeta
Perderiam os pares.
Seriam somente
Sapatos
Na sarjeta.
Sem saltos
Sem bicos
Sem caras
Sem bocas

Sem identidade.