segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 4 - Capítulo 1



Eram precisamente dez horas e dois minutos daquela manhã de sábado.
O local do encontro, vazio e em espera, recebia fortes raios de sol e ainda cheirava a desinfetante. Encontrariam-se lá, pontualmente às onze e um, e teriam a última chance de se livrar do enorme peso que carregavam, cada qual à sua maneira, há tantos anos.
Seria naquela sala redonda, a derradeira reunião dos líderes intelectuais.
Seria naquela sala redonda, a criação da mais perfeita de todas as obras artísticas já elaboradas pelo Homem.
Teriam para isso apenas doze horas. Apenas meio-dia. E por conhecerem há tempos o desafio, tinham agora apenas 59 minutos para esquentarem seus heróis, seus neurônios.

Na verdade, 58. Já eram precisamente dez horas e três minutos daquela manhã de sábado. Que bela merda! Haviam perdido 01 precioso minuto lendo esta rala introdução.

Julia Hilal estava atrasadíssima. Havia acordado duas horas antes para ter tempo de alimentar seu gato branco, dar os telefonemas que precisaria, dar passadinhas em todas as reuniões que havia agendado no mesmo horário, fazer uma aula de dança, uma de fotografia e uma de arte ninja, tomar banho, passar meticulosamente os trinta cremes distintos que usava diariamente, escolher uma calça jeans e uma blusinha preta dentre as duzentas peças de cada que tinha em seu armário, sair, passar no posto para encher o tanque, errar o caminho e poder estar lá, pontualmente, às onze e um.

Julia Palermo estava adiantadíssima e andava de um lado para o outro, sozinha e ansiosa, em frente ao local do encontro. Repassava em sua mente todas as frases que pronunciaria naquela sala, e imaginava as diversas possibilidades de resposta a cada uma delas por cada um dos outros cinco participantes. Acendia um cigarro longo no outro, e soltava fumaça como um dragão enfurecido por não ter podido dormir até às quatro da tarde naquele sábado.

Luana de Souza aparentava estar tranqüila. Realmente acreditava que estava, apesar dos tiques nervosos que a faziam piscar os olhos em uma freqüência de quinhentas piscadas por segundo. Tomava um banho demorado após ter tido sonhos eróticos com um oficial alemão, e pensava se daria tempo de dar um corte moderno aos seus cabelos antes da reunião. Pintaria as unhas de vermelho, vestiria alguma coisa que realçasse suas grandes nádegas, colocaria seus óculos modernos que sempre lhe davam um ar mais jornalístico, mas deixaria a depilação da virilha para o dia seguinte. Afinal, não precisaria se mostrar em trajes de banho ou íntimos para ninguém naquela tarde mental.

Mariana Franco tomava duas neosaldinas e estava de ressaca; física, nunca moral! Havia ingerido uma grande quantidade dos mais variados entorpecentes na noite anterior, e enquanto engolia o segundo comprimido, ainda tentava se lembrar de quem era. Olhava ao redor, não reconhecia o quarto, muito menos o casal que dormia abraçado ao seu lado. Poucos segundos após o último gole de café, já estaria completamente apta a utilizar sua enorme capacidade intelectual em prol daquela nobre causa. Passaria em casa, alimentaria seus cinco filhos, enviaria e-mails urgentíssimos de trabalho ao seu chefe taquicárdico, e estaria lá pontualmente, de cara lavada e olhos brilhantes, focada no objetivo maior, apesar das leves pontadas no estômago e da leve falta de ar.

Ricardo São Thiago estava no banheiro, onde passara a noite em diarréias esgotantes. As mãos trêmulas e a pressão em causar uma boa impressão ao mundo lhe suavam as axilas como nunca. Estudara muito para aquele momento e, agora que estava quase lá, já não via muita graça naquela missão. Pensava em outra. Em outras. E em mais outras enquanto acabava com o quinto rolo de papel higiênico, sua maior despesa mensal. Estava mau-humorado e totalmente sem paciência com o mundo. Tomaria dois litros de café preto norte-americano forte, tomaria dez multas de trânsito no caminho e chegaria no local com um minuto de antecedência – apenas para não deixar transparecer sua ansiedade.

E finalmente, Tatiana Pedra... Bem, ninguém sabia de Tatiana Pedra. Nem ela mesma. Com o violão em punhos, em posição invertida, praticava ioga num gramado distante, diante de uma bela cachoeira, e compunha uma bela canção inédita que enriqueceria ainda mais o repertório musical dos brasileiros carentes da boa música. Pensava na picanha argentina que almoçaria, no forró de mais tarde, e nos braços fortes do garoto ingênuo que levaria para casa naquela noite, em quem daria intensas porradas e chaves de braço que aprendera com sua heroína, Xena, caso ele também brochasse.

Eram precisamente dez horas e três minutos daquela manhã de sábado. Agora, dez e quatro.

Leia o segundo capítulo aqui!

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Metro VII

Não sei mais quem eu sou! Há vinte dias, descobri algo no METRO que já me levou a três internações psiquiátricas, advogados das mais diversas espécies, pais de todos os santos, sessões de regressão, etc...

As espécies...

Desculpe, querido diário, ainda não estou forte para falar sobre isso.
Só posso dizer que todos os meus espelhos foram destruídos.

Quem fez isso comigo vai pagar caro. Ah, se vai!

Folhetim Vagabundo - História 3 - Capítulo 2



Leia o primeiro capítulo aqui!

Capítulo 2 - Aquele que vem antes do penúltimo!

- Tá! E aí?
- Não entendeu?
- Entendi, bobinho. Deus destruiu tudo, menos ele mesmo. Um pouco egocêntrico, eu diria. Tenho certeza que Deus é leonino!
- Não, ele não destruiu tudo. As coisas foram parar em um buraco negro sem a sua concessão. Ou seja, há coisas mais fortes por aí, mais fortes do que a própria vontade divina.
- E quem é essa pessoa que chegou chegando?
- Pois é, essa pessoa é...
- Foi você mesmo que escreveu isso?
- Fui.
- E por que você trouxe isso hoje, justo hoje?
- Porque fui eu que escrevi. Nós escrevemos o que sentimos. Ou quando temos uma mensagem importante para passar adiante!
- E...?
- E... E é isso!
- Como assim, Matheus Ricardo? Onde você quer chegar?
- Eu não...
- Olha, precisamos conversar sobre a tragédia de ontem. Eu sei que te devo explicações, mas você também precisa se explicar, Matheus Ricardo!
- Por favor, traz mais uma garrafa pra gente?
- Do mesmo vinho, senhor?
- Do mesmo vinho! Ou não! Não, melhor, é tempo de variar!
- Sim senhor, vou trazer a carta.
- Obrigado.
- Já sabem os pratos?
- Eu vou querer a lagosta, por favor! Adoro o gritinho dela quando cai na panela.

Matheus Ricardo temia mais fortemente, a cada segundo, a reação dela.

- Muito bem, a lagosta para a senhora. E para o senhor?
- Eu vou querer a picanha argentina de altíssima qualidade, por favor.
- Muito boa pedida. Volto já!

Matheus Ricardo hesitou um pouco, respirou por coragem e disse:

- Enfim, Maura Rubia, onde estávamos?
- Você estava variando de vinho e pedindo sua carne.
- Sim, sim... Não, não, antes disso.
- Antes disso eu não estava entendendo nada! Matheus Ricardo, posso saber o porquê dessa variação de vinho?
- Estou precisando variar. Estou na fase da variação de minha vida.
- Sei...
- Maura Rubia, nossa vela apagou!
- Xi, é mesmo... Chama o garçom que ele traz outra.
- Não, Maura Rubia. Estou falando da nossa vela!
- Eu realmente estou te achando um pouco estranho hoje, Matheus Ricardo. Primeiro esta redação que você me traz, falando de Deus. Sei que religioso você nunca foi. Segundo, essa gafe de variar de vinho numa mesma refeição. E terceiro, essa ênfase no pronome possessivo que você deu acima. Você nunca foi homem de ênfases. Se há uma coisa que nunca vi você fazer nesses seis anos de namoro, é dar ênfases.
- Já entendi. Você foi bem enfática. Enfim, o que eu pretendo te...
- Peraí, você está debochando da minha cara? Na minha frente? No dia do nosso noivado?
- Para com isso, Maura Rubia. Foi só um pequeno sarro.
- Acho melhor você passar a aliança para cá e pedir logo essa conta. Nesta noite não haverá sol, meu rapaz! É daqui pro berço! E cada um no seu!
- E se eu te disser que não há aliança?
- Como assim não há aliança? Vai me dizer que você foi incapaz o suficiente para esquecer a aliança em casa?
- Não, Maura Rubia, não é isso... Pra onde você tá ligando?
- Pra sua mãe!
- Minha mãe?
- Sim, senhor... Que educação foi essa que ela te deu?
- Desliga esse telefone, Maura Rubia. Desliga.
- Não.
- Ela deve estar dormin...
- Alô? Sou eu, dona Jacintha. Preciso te pedir um favor. Como assim? Sim, no restaurante ainda. Como assim, “sozinha”? Nós viemos juntos. Sim, ele está aqui, por que não haveria de estar? Sua mãe é tão louca quanto você. Nós vamos casar e mudar para a Nicarágua, escreva o que eu estou te dizendo. D. Jacintha, desculpe, não estava ouvindo. A ligação tá falhando. Escuta, o motorista da senhora ainda está acordado a essa hora? Não, é que eu queria te pedir um favor. Pede para ele trazer nossas alianças aqui no restaurante. Devem estar no bolso interno esquerdo do paletó caqui do Matheus Ricardo. Tá pendurado na poltrona do quarto. Como? - Silêncio - Como assim? - Silêncio - Como assim, D. Jacintha? – Maura Rubia rompia em lágrimas – O que a senhora está me dizendo, D. Jacintha? A senhora não pode terminar o namoro desse jeito! A senhora nunca me amou, foi isso... Eu não sou boa o suficiente! Ah, que ótimo, então me dê um bom motivo! Não vou falar com ele, a senhora é que se explique. Tem outra nora na sua vida, D. Jacintha? Vai! Fala na cara! Tem ou não tem? Por que se a senhora acha que...

O garçom na cozinha cuspia no prato da cliente que havia reclamado do excesso de sal.
O entregador, que esperava por um pedido do lado de fora do restaurante, observava o sistema de alarmes pensando em chamar os amigos para um assalto a mão-armada na noite seguinte. Pensava se teria ou não de atirar no gerente.
O senhor de óculos da mesa da esquerda cutucava o nariz e lambia os dedos.
O casal da mesa da direita comia em silêncio e não trocava olhares, sequer palavras. Ele pensava na amante esperando no quarto de motel e ela pensava no anel de diamantes que pediria de Natal, no vestido D&G que havia visto na vitrine, nas mãos do massagista e no preço exorbitante do asilo onde colocaria seu pai recém-viúvo em duas semanas. Pensava também se contaria para ele antes, ou não.
A faxineira que limpava os cacos da mesa dos fundos cortava os dedos e se envergonhava por sentir dor em frente aos clientes.
O gerente embolsava disfarçadamente as gorjetas dos garçons.
O chef, assim como Maura Rubia, gozava o grito da lagosta que acabava de colocar na água fervente e pensava o motivo pelos quais as pessoas eram tão avessas ao desmatamento mundial.

E Matheus Ricardo... Bem, Matheus Ricardo se escondia atrás do guardanapo e fugia dos olhares e dos dedos indicadores de todos os clientes e funcionários daquele restaurante. Naquele momento, pedia somente que Deus acabasse com tudo aquilo, e que quando recriasse o mundo, desse uma turbinada na sensatez emocional das mulheres.

Deus Todo Poderoso, ele mesmo, por sua vez, olhava aquela cena patética e pensava: “Que bela merda que eu fiz! Que tédio, realmente! Esse mundinho está tão estragado, que mesmo para tirar minha bunda da cadeira para acabar com tudo, tenho preguiça! Gosto muito da idéia daquele Matheus Ricardo. Só não gosto do nome... A gente faz tão bem feito e a mãe acaba com o glamour... Mas se não fosse eu, quem mais poderia fazer esse serviço? Quem seria aquela pessoa que chegaria em meio à Total Inexistência? Será que mato o tal Matheus agora mesmo para perguntar a ele? Será que adiantaria? Ele viria para cá, ou serviria O Lá De Baixo? Vou pedir pra Maria levantar a ficha dele...”
Andava pra lá e pra cá, agoniado mesmo. Chega, então, o anjo Sensatel, o que acaba gerando em Deus aquela conhecida sensação de déjà vu. Nem deu bola! Como ele havia criado tudo, tudo para ele era déjà vu!
- Ó Deus Todo Poderoso quanto ali na terra quanto aqui no céu, tá agoniado desse jeito por quê?

E etc, etc, etc...

O final dessa história você já conhece.
Chegue mais perto do começo dela aqui! Mas só amanhã!

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 2 - Capítulo 3



Leia o início desta história aqui!

Capítulo 3

Leia ouvindo isso: http://www.youtube.com/watch?v=O_cLZD0-oNo

Odair segurava com firmeza o pescoço do irmão. Podia sentir cada gomo de sua traquéia.
- Que merda, Cosmo! Te disse que a Sonia era só minha, cara. Que merda! Por que você tem sempre que tomar tudo que é meu, cara? Por que?
Cosmo tentava se esquivar, tentava puxar o ar para poder falar, mas não podia. Sentia a pressão de seus olhos aumentando rapidamente. Estranhava aquela sensação. Olhava para Odair e se via. Era como se ele mesmo estivesse se enforcando. Eram realmente idênticos. Cada marca, cada fio de cabelo, cada expressão. Por um momento, quase achou graça. Encarou Odair no fundo dos olhos e foi aos poucos percebendo a mudança no humor do irmão.
Odair tinha a mesma sensação. Matar o irmão gêmeo seria o mesmo que um suicídio. Ao ver seu próprio rosto odioso refletido nos olhos de Cosmo, assustou-se. Tornava-se seu pai.

*************************

Era uma tarde quente, 16 de fevereiro de 1991. “É no chuê, chuê. É no chuê, chuá. Não quero nem saber. As águas vão rolar.” As rádios tocavam repetidamente o samba enredo da escola campeã, que iria desfilar novamente naquela noite. Honório na churrasqueira, Cosmo e Odair na piscina, disputando uma bóia, e Odete, a mãe dos gêmeos, passando coca-cola no corpo para se bronzear.
- Tá saindo a picanha!
- Ai, Honório, picanha de novo?
- Não se preocupe, Odete. Essa é argentina. De altíssima qualidade. Sei que você adora tango.
Calmamente, com a peça de picanha inteira espetada no garfo de churrasqueiro, Honório chegou perto da piscina.
- Comam, seus cães!
Jogou a picanha na água e partiu violentamente em direção a Odete. Ergueu-a da espreguiçadeira pelo pescoço e enfiou sua cabeça na piscina.
- Eu odeio argentinos! Tá vendo essa carne aí no fundo? Esses bastardos vão comer agora o lombo do pai deles! Você e seu professor de tango vão dançar no inferno! Vadia!
“É no chuê, chuê. É no chuê, chuá. Não quero nem saber. As águas vão rolar.”
Cosmo e Odair viram por baixo d´água o vitrificar dos olhos da mãe.

*************************
- NÃO!
Odair gritou, soltando o pescoço do irmão.
- Não quero ser como ele!
Cosmo tentava recuperar o fôlego enquanto o abraçava.
- Tudo bem! Passou.
Odair chorava,
- Porra, Cosmo! Por que você faz isso? Pára de se passar por mim por aí. Pára de copiar minha vida!
- Eu te amo, cara! Te amo!
- Eu sei! Também te amo!
- A Sonia é minha, Cosmo. Faz cinco anos que eu vou lá no puteiro dela. Faz cinco anos que eu invento uma reunião em Itu toda terça-feira, só pra poder comer ela. Cheguei lá hoje e ela disse “Ué? Já? A gente não tinha marcado pra amanhã?”. Nunca vou lá nas quartas, cara! Nunca! É terça, cara. Sempre terça!
- Foi mal!
- Pára com isso, Cosmo! Pára!
- Vou parar. Eu juro!
- Tava ligando pra quem?
- Eu? Pra ninguém.
Já mais calmo, Odair entregou um pedaço de papel ao irmão.
- Olha só. Cheguei lá hoje e a Sonia disse que o enfermeiro da clínica do papai deixou esse papel com ela semana passada. Parece que o enfermeiro é traveco, trabalha na clínica de dia, e lá à noite. Acho que é a segunda pista. Você não quer mesmo ir atrás disso? Vou ter que fazer tudo sozinho?
- Cara, não curto esses joguinhos. Você sabe.
- Mas depois vai querer dividir a grana! Eu preciso de você, Cosmo. Você sabe!
Silêncio.
- Passa pra cá essa merda!

Minha terra só tem vermes
Meu pulmão não tem mais ar
No meu ânus tem um tubo
Quero ver quem vem buscar!


Com meio sorriso nos lábios, Cosmo disse:
- Vamos hoje?
- Onde? Eu não entendi a charada.

Odair sempre foi o músculo, e Cosmo o cérebro. Naquela mesma noite, invadiram o cemitério onde o pai estava enterrado. Cavando sozinho, sob supervisão de Cosmo, Odair exumou o corpo do pai, retirou a rolha que lhe tampava o ânus para que as secreções não vazassem e, lá no fundo, encontrou um tubo. Era o canudo da formatura de Honório. Dentro dele:

Sem diploma universitário vocês não chegarão a lugar algum. Mas parabéns por terem chegado até aqui. Vamos ver se esses cérebros argentinos servem para alguma coisa:

Examinem este corpo
Sob as unhas o que há?
Aquele que é enterrado com vida, suas marcas deixará!

- Enterrado com vida, Cosmo? Como assim? Ele estava morto! Eu vi, com meus próprios olhos.
- Calma!
- Você não foi ao funeral, mas eu vi!
Com um único chute, Cosmo virou a tampa do caixão de ponta cabeça. Arranhões. Muitos arranhões. Odair, agachado ao lado do corpo do pai, gritou, em desespero!

- Cosmo!! Não é ele!

Cosmo virou-se rapidamente e encarou o rosto do morto, que o deixou sem ar e aterrorizado!

- Cosmo!
- Calma, Odair. Preciso pensar!

O capítulo 4 você lê amanhã, aqui!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Folhetim Vagabundo - Capítulo 4



Leia antes os capítulo anteriores!

Capítulo 1 - no blog Impressões em Desalinho

Leia agora o quarto capítulo da primeira história do projeto.

- Alô. Oi, sou eu. (...) Como quem? Bárbara, quem mais poderia ser? Ela caiu! (...) Não, desmaiou! Tá aqui estatelada no chão da sala. (...) Ah, meu querido, também o que você esperava? Você pode me explicar esse pedaço de picanha? (...) Não, ‘veja bem’ não! Combinado é combinado! Te disse mil vezes para colocar o olho esquerdo da última na caixa. Era verde acinzentado, lindo! E você faz o quê? Coloca um pedaço de picanha descongelado! Puta que o pariu, que pobreza é essa? Depois pergunta por que os jornais pararam de cobrir! Que decadência! (...) Não, Estevão, qualquer coisa que você disser vai te fazer ainda mais patife! (...) Que tivesse me chamado, então, que eu arrancaria aquele olho com colherinha de café, meu bem! (...) Tá, então da próxima vez a gente muda essa divisão de tarefas. (...) Ué, fácil! A gente passa a procurar por homens desesperados, eu fico posando de gostosa exibicionista, pinto um quadro seu pra botar na parede, e no dia da coleta você não precisa fazer nada. Deixa a mutilação e a preparação da caixinha comigo. Você só vem retirar a mercadoria. (...) Valei-me Deus, Estevão! A mulher da semana passada ainda está fresquinha. Me poupe dessas frescuras de cheiro de cadáver. Peidou na tanga, isso sim! (...) Sei. (...) Sei. (...) (...) (...) Bom, então tá. Quando for o olho, deixa comigo, que eu não ligo a mínima pra essa frescura de janela da alma. (...) Exato, quando for outra parte, você faz. Tá bom assim, fofo? (.) Então ótimo. Agora me diz o que eu faço com essa? (...) Como pula? Não dá pra ficar uma semana sem. Você sabe das minhas crises de abstinência. (...) Ah, que genial! Mato ela e deixo aqui, no meio da sala? (...) Mas isso vai exatamente contra nosso propósito, Estevão. (...) Eu sei que ela quer morrer. Aliás, são 47 cortes, viu, não são 48. Isso, 47. É, ela é igual à terceira de maio. (...) A ruiva, sardenta, que também tinha um corte para cada ano de vida. (...) É, interessante, né? Deve ser um tipo de padrão. Que bonitinhas. (...) Mas enfim, você acha que eu acordo ela pra você vir pra cá, ou você come mesmo assim? (...) Tá. (...) Tá bom. Vou amarrando na cama, então. (...) A calcinha? Peraí. Já tá sem calcinha. (...) Tá, coloco. Que cor? (...) A de renda ou a sem costura? (...) Tá bom. (...) Espera um pouco. Não, tá sem perfume. (...) Peraí, vou ver no banheiro.

Esperava qualquer chance para abrir os olhos. Finalmente. Aquilo não poderia estar acontecendo. Já tinha lido nos jornais sobre os Assassinos das Mulheres Desesperadas. Psicopatas que perseguiam mulheres carentes e de tendência suicida, mantinham um jogo sutil de voyerismo e exibicionismo com elas, e em determinada noite invadiam suas casas com um presente - sempre parte do corpo da última vítima - faziam-nas gozar de prazer até a última gota, envenenavam-nas com arsênico e levavam-nas, mortas, até uma espécie de cativeiro, repleto de vitrines cujas manequins pareciam estar embalsamadas, nuas, cada qual em uma pose diversa do grande livro oriental de sexologia, o Kama Sutra. Nos apartamentos vazios, a polícia e os jornais encontravam apenas a caixinha de presente, o próprio presente, e as seguintes frases, escritas com batom vermelho no espelho do banheiro da vítima: “Esta noite teve sol. Mais uma vida salva. Para mais informações, acesse nosso blog: www.luznofimdotúnel.blogspot.com. Obrigados pela presença. A.M.D.” Apenas uma vítima havia conseguido escapar do cativeiro. Era tolerante ao arsênico, por uso e abuso da substância desde os dez anos de idade, em tentativas múltiplas e frustradas de suicídio. Havia entrado para um convento na semana passada, segundo os jornais.
Nunca imaginou que poderia acontecer com ela. Nunca se enquadrou na descrição das vítimas. Ah, a negação. Sempre o primeiro sintoma.
Precisava agir. A primeira coisa que viu ao abrir os olhos foi a faca suja de sangue debaixo do sofá. Estava confusa. Vindo do banheiro, ouvia:

- Afe, Estevão. Só tem perfume barato. Não quer trazer um dos meus, não? Traz o que você me deu de aniversário de casamento. (...) Mas qual é o problema em sentir meu cheiro nela? Não é essa a idéia disso tudo? Dar uma levantada na nossa vida sexual? Então... (...) Ah, sei. (...) Não, depois não. Vamos conversar agora. Se nem isso está dando certo, o que você pretende? Daqui a pouco vai querer que eu implante um pinto! Faça-me o favor! (...) Não, não estou louca. É você que é um brocha! Acho bom vir logo pra cá terminar esse seu ritual, que eu estou perdendo a paciência. Deixei todas as minhas amigas jogando tranca sem mim porque topei entrar nessa...

A mulher do quadro estava voltando. Não se lembrava mais da posição que tinha adotado quando fingiu o desmaio. Finge de morta!

- ... Estevão. Que estranho. Acho que ela mexeu. Sabia que essa picanha traria mau agouro. Vem logo pra cá. Tá. Tchau.

**************************

- Samantha, sou eu, Ricardo! Você desligou o celular? É a décima terceira mensagem que eu te deixo. Liga pra mim, agora! Preciso de você. Preciso ouvir sua voz. Não consigo dormir sem seus beijos. Não, melhor... Não precisa me ligar, não. Estou indo pra aí.

**************************

Bárbara correu ao quarto de Samantha em busca da calcinha desejada por Estevão. Ainda precisaria despí-la do roupão, vestir-lhe a tal calcinha, passar-lhe o batom vermelho, carregá-la até o quarto, amarrar-lhe os punhos na cabeceira da cama, dar um jeito de acordá-la, e, provavelmente acalmá-la. Pensava se prepararia um chá de camomila para isso, ou se uns tapas na cara resolveriam. Não! O chá! O chá seria melhor! O que uma mulher não faz por um pau duro na cama matrimonial!

*****************************

- Samantha, sou eu, Ana. Te esperei na balada até agora. Estou bêbada! Preciso de você. Preciso do seu cheiro. Por que você não me atende, Samantha? Você não me ama mais? O porteiro me disse que o Ricardo tem freqüentado seu apartamento. Pode me explicar isso, Sá? Pode? Ah, que ódio de você, Samantha. Quanto amor eu sinto! Acho bom você estar em casa. E sozinha. Estou indo pra aí.

*****************************

Aquele corpo havia se mexido de novo. Bárbara tinha certeza. Não podia estar enlouquecendo. Com a calcinha em uma das mãos e o batom vermelho na outra, abaixou-se para arrancar-lhe o roupão.
Maçaneta. Porta-aberta.
Sem olhar para trás:
- Que demora, Estevão! Como você é lerdo, sua lesma brocha! Achei que...
Ao abrir o roupão, notou uma faca na mão direita da futura vítima. Olhou para a porta, no tempo exato de ver a faca lançada se alojar no coração de quem entrava.
Ainda ao som do grito assustado de Bárbara, Samantha a arremessou ao outro lado da sala, e olhando para o corpo esfaqueado, já de joelhos, ainda de olhos abertos, sangue jorrando da boca segundos antes de cair ao chão, esgoelou-se num terrível:
- Nããããão!



Curiosidade também pode matar!
O próximo capítulo você encontra amanhã, sexta-feira, no blog de Marina Franco, "Olhos Recém Nacidos": http://olhosrecemnascidos.blogspot.com/

Boa leitura!

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Metro VI

M.E.T.R.O - Meu Espelho Tornou-se Rotina Obrigatória

É esse o nome do grupo de auto-ajuda para onde Sofia me enviou com aquele número de telefone. Trata-se de um apoio a homens metrossexuais obsessivos.
Quando cheguei ao grupo, no dia seguinte ao telefonema, me senti uma aberração. Meu caso era raro, disseram-me. Ainda não entendi porquê, mas o condutor do grupo disse que já havia agendado uma consulta em uma dermatologista especializada em tratamentos a laser, que iria livrar o meu corpo daquela tatuagem, marca registrada e evidência criminal do meu transtorno. A consulta é amanhã. Hoje volto à reunião.
Enfim, não concordo com nada disso. Sinto-me ultrajado. Mas farei de tudo para ter Sofia de volta.
Desde aquela noite não tenho notícias dela. Recebi apenas uma mensagem, escrita no verso de uma embalagem de preservativos tamanho médio com o mesmo batom dourado, que dizia: estou ótima. Pobre Sofia. Deve estar passando por dificuldades desumanas e não quer me preocupar. Deve ter revirado latas de lixo para encontrar superfície digna para me escrever.
Tenho vivido minha rotina normalmente. Apenas limpando a casa quatro vezes ao dia, ao invés de três. Quero cheiro de jasmim quando ela regressar.

Preciso vomitar.

Voltei. Ando extremamente nauseado ultimamente. Deve ser a ausência de meu amor.

Michele está me intrigando. Desde que Sofia se foi, faz-me visitas diárias. Traz-me quitutes, sucos e lenços umidecidos. Ainda não concluí suas intenções. Estou deixando as coisas andarem, deixando-a à vontade. Digo e repito: tenho pulgas atrás das orelhas por Michele.

Preciso vomitar.

Não saiu nada. Só água. E um pouco de gordura que deu um ar purpurinado à secreção expelida. Ah, as belezas e perfeições humanas.

Pêsames à mim, por minha tatuagem, por meu belo presente desdenhado. Olho para ela a todos os momentos sabendo que são os últimos, sabendo que, em seu lugar, uma horripilante cicatriz habitará meu peito.

Te espero, Sofia. De braços abertos e tonificados. Te espero com cãimbras, tremores e vontade insana de urinar. Meu amor... Minha titã... Meu ar!
Vem aí!









Aguardem!