quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 8 - Capítulo 3



Leia o primeiro capítulo aqui!

Em um ritual silencioso, abrimos nosso tesouro e forramos o solo com nossos livros. Sobre eles, nos deitamos e fizemos amor sem dizer uma palavra sequer. Nos vestimos, e num beijo ainda mais doce do que o primeiro, nos despedimos para sempre. Nada sei da vida de João. Se era casado, se tinha filhos, se era feliz... Mas não quis saber. Quis ter dentro de mim o João das minhas memórias de infância. E assim foi. De repente, me ocorreu a possibilidade de ter engravidado de João naquele momento. E somente então me dei conta da dimensão da tragédia que estava por vir. Nunca poderia ser mãe. Liguei para a minha e dirigi até sua casa.
Como a maioria das mães e de suas filhas, sempre tivemos desavenças. Aquela disputa freudiana clássica, que nos impede de nos doarmos inteiramente uma à outra. Cheguei e encontrei-a sentada em sua cadeira de balanço. Sentei-me ao seu lado e juntas tomamos um chá, com torradas pretas e queijo mineiro. Ao fim do último gole ela tocou minha mão e eu dei-lhe um prolongado beijo na face, beijo regado por uma singela lágrima que lhe escorreu pelo rosto. Olhamos para o porta-retrato de papai que ela agarrava junto ao peito e sem dar as costas, como uma plebéia distancia-se de sua rainha, sai.
Olhei para o céu. Estava vermelho. Era um lindo por do sol ao meio dia. Decidi que era hora de calibrar os pneus, verificar água e óleo e de fazer as unhas.

Leia o próximo capítulo aqui!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 7 - Capítulo 2



Leia o primeiro capítulo aqui!

Agora, sentada naquele corredor de luz forte e esbranquiçada, olhava para trás e não conseguia ver pegada alguma; não as suas. Mas as de Mariana eram evidentes.
Mariana teve a festa de debutante que Ana Clara tanto sonhara; Mariana fez os cursos de artes e de línguas que Ana Clara tanto queria; Mariana ganhou o cachorro tanto negado a ela, casou com o vestido dos desenhos dela e nomeou seus filhos com os nomes planejados por ela.
Mariana dorme agora em Paris, onde mora há vinte anos, e deve estar abraçada ao braço forte de Pierre; e Ana Clara sente sono com um copo de café intragável nas mãos, enquanto aguarda a notícia eminente da morte do pai, que nada sente e nada tem, exceto sua própria velhice que lhe definha.
E assim tem sido há muito tempo. Ana Clara velou sua mãe, e mandou notícias. Velou sua madrasta, e emitiu as passagens de Mariana. E agora, ainda brincando sozinha com seus anéis, aguarda um momento oportuno para telefonar à irmã para não atrapalhar seu sono.
Pensa no seu apartamento vazio, no seu gato que não come há dois dias, na comida que apodrece na geladeira e que será desperdiçada, no seu emprego recém perdido por ausências em demasia, e reza por uma lágrima sequer, que alivie um pouco sua angústia.
Olha para o chão, prende os cabelos desgrenhados atrás das orelhas e pensa que gostaria de ter alguém à sua volta, alguém de quem pudesse se esconder para fumar um cigarro, alguém que justificasse a compra de chicletes mentolados para disfarçar seu hálito. Desde seu primeiro e único beijo, nunca mais tivera essa preocupação.
Vê um par de sapatos brancos e sujos se aproximando. A enfermeira do turno da noite diz que seu pai chama por ela na UTI.
Apressa-se, joga fora o café junto com seus pensamentos, se paramenta toda e com um sorriso imenso nos lábios, se aproxima da maca do pai. Diz bem de mansinho:
- Oi, pai. Estou aqui.
E ouve em um rasgo:
- Mariana, minha filha. Minha querida... Onde está sua mãe?
Sem fôlego, tenta dizer:
- Não, pai... Não sou a...
Mas se contêm. E se corrige:
- Papai, a mamãe não está mais conosco, lembra?
- Ela estava aqui há pouco... Aonde ela foi?
- Pai, você devia estar sonhando... Está tudo bem, viu! Está sentindo alguma coisa?
- Sinto... Sinto saudade. Saudade, Mariana. Saudade de Ana Clara.
Sentindo o coração lhe apertando a garganta, Ana faz um enorme esforço para levar o ar aos seus pulmões.
- Onde está a Ana, filha? Onde ela está?
Ana leva as mãos trêmulas ao rosto, olha para os lados e não sabe responder. Não sabe dela mesma há muitos anos.
- Quando falar com ela, filha, mande um recado meu. Ouça bem, porque passei minha vida toda levando no peito trancado esse segredo.
Com medo de ouvir e sentindo-se desmerecedora das palavras do pai, apesar de saber serem todas dela, Ana Clara sussurra:
- Pode falar, pai. Estou aqui.

Leia o capítulo 3 aqui!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 6 - Capítulo 4




Leia o primeiro capítulo desta viagem aqui!

E então, Betina acordou!
Olhou para o teto e reconheceu o aconchego de seu próprio quarto, na casa da avó. Ai meu, tipo assim, que viagem – pensou e riu sozinha. Vou pintar meu cabelo de roxo – decidiu. Ai, que dor no peito – reclamou baixinho. Ué, não tinha um tapete atrás da porta – se perguntou. Mas não sabia a resposta. Nunca sabia as respostas. Que droga – se expressou.
Quando tentou se levantar, viu que não podia. Estava presa. E só então decidiu olhar à sua volta. Ufa, estava mesmo no seu quarto.
- Não! Não pode ser!! – exclamou.
Foi quando Betina percebeu que estava enfiada em espetos gigantes sobre uma enorme fogueira ainda apagada. Seu corpo todo besuntado de sal grosso, como uma picanha argentina numa churrasqueira. À sua volta, em um canto do quarto, os palhaços do Éden salivavam e empunhavam garfos e facas esperando a refeição. No outro canto, sua avó fumava um charuto enquanto Ed a lambuzava de leite de rosas. No terceiro, Raul e Vitória dançavam uma valsinha macabra. E no quarto e último corner, os cinco grandes artistas - Tim Burton, David Lynch, Edward Munch, Edgar Allan Poe e Stephen King - se preparavam para rodar o rolete que assaria Betina por igual.
- Socorro! – urrou Betina - Socorro! Cadê meu macaco?
Onde estaria o King Kong Salvador, que a Salvaria Dali, daquele pesadelo?
- Estou bem aqui, meu bem – ouviu Betina, para logo depois perceber a cabeça do macaco entre suas pernas - Só estou checando os fatos - completou o macacão.
- Que fatos?
- Você não iria entender – disseram os escritores em uníssono, acompanhados das gargalhadas dos palhaços, dos gemidos dos velhos e dos suspiros dos noivos.
- Alguém me belisca! Isso não pode estar acontecendo!
- Confirmado – disse o macaco com propriedade – É ela mesma!
E então, num enorme crescendo, todos os entes bizarros iniciaram um grande coro, afinadíssimo:
- Vamos comer a Madonna, vamos comer a Madonna, vamos comer a Madonna...
- Quem é Madonna?



- É você, meu bem! – gritou o macaco cheiroso, pulando em cima dela e acendendo um fósforo.
Como uma virgem, prestes a ser crucificada, Betina sentiu uma forte pontada em seu ventre. Pela sua vagina escorregou um lindo feto feminino. Com lágrimas nos olhos, Betina que era Madonna sussurrou:
- Vou te chamar Lourdes Maria. Vamos celebrar!
- Que cheiro é esse? – indagou a vovozinha.
Os cinco autores se entreolharam preocupados e, hesitantes e em novo uníssono, responderam:
- É cheiro de pipoca no ar. Pipoca com guaraná!

E então, Lourdes Maria soltou seu primeiro som.




Leia aqui o último capítulo da saga de Betina Madonna.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Folhetim Vagabundo - História 5 - Capítulo Final




Leia o início desta história aqui!



Bom dia, São Paulo! Eram 6h20 da manhã. Helena saltou da cama num grito. Estava em sua casa e dormia de lingeries e salto alto. Seus olhos de maquiagem borrada passaram despercebidos ao espelho, que a viu escovar rapidamente os dentes e prender um desgrenhado rabo-de-cavalo para sair. Estava atrasadíssima.
Na portaria, passou como um raio por Seu Jorge e não percebeu o beijo e a piscadela de olho esquerdo que ele mandou para ela.
Comprou o jornal na saída do metro e correu ofegante para o prédio da polícia. Devia parar de fumar tanto, pensava.
Entrou, pegou um café horrível, sentou. Apanhou o canivete, o maço de lápis sem ponta e começou seu ritual de espera pela próxima vítima. O dia estava nublado e o escritório muito escuro. O cheiro da sala naquela manhã estava estranhamente ruim, um agridoce fétido. Seria sempre assim e nunca havia percebido, se indagava. Como é bela a proeza da rotina em se reinventar dia após dia.

Então ela chegou. Papel em branco sobre a mesa, lápis afiadíssimo.
- Nome?
- Camila Santos.
- Idade?
 
Estava nervosa e chorava muito. Mais um caso de estupro, desta vez no estacionamento de um prédio. Pobres mulheres. Como são frequentes os casos de estupro nesta cidade. Deveria tomar mais cuidado.
 
Camila Santos não fumava. Seu fôlego devia ser impecável. Ponta de inveja. Seu desempenho na cama devia ser um arraso. Se eu fosse homem, pensava enquanto desenhava, também teria vontade de estuprar uma Camila Santos.

Findada a descrição dos olhos do estuprador, Helena sentiu a contração de seus pulmões. Não podia ser. Mais um rosto conhecido! Olhou para a vítima, que buscava uma escova na bolsa para pentear os cabelos desgrenhados, e a observou soltar o rabo-de-cavalo que a prendia, balançar suas mechas louras e alisar sensualmente seus lindos fios dourados. No dorso da mão que segurava a escova, uma estrela tatuada.

A visão de Helena escureceu. Em choque, avistou no jornal que estava sobre a mesa uma pequena nota no canto inferior direito, ilustrada por um rosto desenhado em retrato falado. Era o desenho dela. Era o rosto de Marcelo, dado como desaparecido na noite anterior, visto pela última vez saindo na companhia de uma mulher desconhecida do Teta Jazz Bar, onde havia trabalhado naquela madrugada.

Buscou novamente o rosto de Camila, que não estava mais à sua frente. O que via agora, era arrepiante. Percebeu tudo. Percebeu-se.

O prédio da Polícia Federal, para onde ia automaticamente todas as manhãs, estava abandonado há vinte anos. À sua direita, um aparador com garrafas térmicas velhas, cada qual etiquetada com o número de cada andar daquele prédio, ao lado de outra etiqueta que anunciava em letras garrafais, CAFÉ DOCE.
Ao olhar à sua volta, Helena sentiu uma forte contração no estômago. Não estava sozinha naquela sala. Em cada uma das mesas do departamento havia um corpo sentado. Corpos de homens. Corpos de homens conhecidos. E escondendo o rosto de cada um deles, seus próprios retratos falados, presos por lápis que furavam-lhes os olhos, tanto os dos desenhos, quanto os das vítimas.

Helena saiu daquela sala em desespero e correu por todo o prédio, por todos os andares. Somente o primeiro estava vazio. Todas as salas, as alas, os guichês, os corredores, todos estavam ocupados por seus homens, seus estupradores, suas vítimas.

Com as pernas bambas, voltou à sua sala e percebeu que na mesa ao lado da sua, estava o corpo de Marcelo. O sangue ainda fresco, ainda escorrendo por trás do papel desenhado.

Num salto, sentiu seu telefone vibrando no bolso da calça. Com as mãos trêmulas, leu a mensagem que havia chegado:

DONA HELENA... DESCULPA EU... LENINHA. NEM ME DEU BOM DIA, HEIN... MELHOR DISFARÇAR MESMO! SE O SINDICO DESCOBRE, TO FRITO. JÁ MARQUEI HORA NO TATUADOR QUE A SENHORA ME PEDIU. VOU HOJE À TARDE. QUERO TE MOSTRAR DE NOITE. O ESTACIONAMENTO VAI ESTAR VAZIO DE NOVO. UMA E MEIA, PODE SER? AQUELE BEIJO NA COXA QUE A SENHORA GOSTOU!

Olhou para o retrato falado fresquinho sobre sua mesa. O rosto do porteiro em desenho parecia muito mais harmonioso do que ao vivo. Por que Deus havia criado os rostos das pessoas, se eu mesma posso fazer muito melhor, se indagava.

Olhou no relógio.

Boa tarde, São Paulo. Eram 12h15. Precisava bater o ponto, tinha uma hora cravada de almoço. Se atrasasse um minuto, tinha seu salário descontado. O RH da Polícia Federal era muito severo. Muito severo mesmo. Depressa, apanhou a bolsa e o jornal sobre a mesa, e saiu do prédio.

Enquanto comia sua picanha mal passada de praxe, lia assustada uma nota no jornal sobre o desaparecimento de seu vizinho, o saxofonista. Pesarosa, pensava que não poderia ajudar. Não prestava para nada mesmo. Estava em excesso naquela sociedade. Sequer sabia os nomes de seus vizinhos, das pessoas que a rodeavam no dia-a-dia. Olhou para a garçonete que trazia o cigarro que ela havia pedido. Pobre garçonete. Poderia ser vítima de estupro a qualquer momento.

Qual é o seu nome?
O meu? Cristina. Cristina Sales.

No dorso da mão de Cristina, uma tatuagem de estrela lhe pareceu estranhamente familiar...


Leia o primeiro capítulo da História 6 aqui! Mas só segunda-feira!