Ele, um velho mendigo, com um dos olhos tapados por um pedaço de pano sujo, que um dia fora uma gravata de um executivo da Avenida Paulista.
Ele, um velho manco e bem vestido, com um sorriso estampado nos olhos, vindo de um lugar desconhecido, indo a um lugar desconhecido.
Ele, um velho negro com uma pequena folha verde nas mãos, caminhando na Rua Augusta, em meio a hypes, intelectuais, artistas, e prostitutas.
Ele, com um dos olhos tapados, vagando por lojas de decoração da Baixa Teodoro, não pôde enxergar direito, por estar com um dos olhos tapados, ou por estar exageradamente bêbado, e ao meio.
Ele, manco mas sorridente, enxerga exatamente três figuras entrando no elevador de onde ele saia, rumo ao desconhecido, e além das três figuras enxerga.
Ele, com os ouvidos absolutos cansados de buzinas e gritos, encontra conhecidos em uma mesa na calçada, e senta.
Ele, não enxergando direito, vê na fachada de uma das lojas, um ornamento dourado em contraste com a parede de granito preto, enorme e redondo, que para nada deve servir, mas que para ele é um cofre gigante que esconde tudo o que a ele falta.
Ele, enxergando além das três figuras, observa em especial o antebraço do entregar da padaria vizinha, que acabara de entregar uma média e um pão na chapa à secretária do escritório, e que agora entrava no elevador de onde ele saia, para voltar à padaria.
Ele, cansado das buzinas e gritos, e especialmente cansado do riso escandaloso da amiga do amigo que na mesa da calçada sentado estava e a quem ele se juntara, leva a pequena folha verde à boca.
Ele, decidido a abrir aquilo que para ele era um cofre, mas que sabemos nós que para nada servia, segura firmemente o ornamento dourado e em um impulso de toda a força que lhe resta, tenta primeiramente girar, na obviedade de ser um cofre, e não conseguindo nem um movimento do ornamento, puxa.
Ele, observando o antebraço do entregador, além de pele, ossos e nervos vê a fechadura que ele sempre buscara, a fim de encaixar a chave que com ele nascera, e que ele sempre carregara.
Ele, cansado de tanto silêncio barulhento e levando a pequena folha verde à boca, começa a emitir notas de um trompete, calando o riso escandaloso da amiga do amigo, e calando qualquer som despropositado daquela madrugada.
Ele, que mesmo puxando não consegue nada, junta os cacos de sua força embriagada, e apoiando os pés na parede de granito da fachada, e agora acompanhado de um grunhido como efeito sonoro, mais uma vez, puxa.
Ele, vendo a tão sonhada fechadura para sua chave no antebraço daquele entregador, ataca com a chave imaginária em punhos, e a enfia com finco na fechadura que só ele via, e que nós sabemos que não havia.
Ele, na proeza de produzir um bolero com a pequena folha que em seus lábios pendia, abrilhantava uma rua suja e continuava silenciando a gritaria.
Ele, com um dos olhos tapados e cansado de tanto tentar e nada conseguir da vida, esbraveja, xinga, se lembra por um milésimo de tempo do porquê que é mendigo, cambaleia e decide tentar seguir caminhando.
Ele, percebendo que sua fechadura não era nada além de um antebraço de uma figura desconhecida, por dentro rindo da cara de questão do espantado entregador, segue por fora só sorrindo, com o mesmo sorriso com o qual a pouco saíra do elevador, e rumo ao por nós desconhecido, continua mancando indo.
Ele, soprando na pequena folha verde o resto da última nota de sua melodia, recebe os aplausos que tanto merecia, sorri com orgulho, e se apresenta “O Folhinha”.
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