quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

A Prisioneira

Organizava tudo em ordens: numéricas, alfabéticas, arquetípicas, lógicas, genéricas, cronológicas e prismáticas.
Organizava tudo em potes. E em estantes. E em arquivos.
E sua incapacidade de lidar com a perda a tornava uma grande, e gorda, carcereira. Colocava atrás das grades, a beleza do mundo.
Obviamente não toda a beleza do mundo, mas apenas a beleza do seu mundo. O que para ela era belo, era para ela, dela.
O problema era o espaço. Era cada vez mais difícil, apesar de todo byte, kbyte, megabyte e gigabyte, armazenar toda aquela beleza. E por ser eclética por natureza e curiosa por formação, desterrava a beleza, cada vez mais, em tudo, ou quase.
E desta forma, apurava seus sentidos, que percebiam nitidamente um belo acorde em uma terrível canção, uma bela cena em um monótono filme, um belo ângulo em uma escura fotografia. E já era quase impossível evitar seu desejo de tudo possuir. Em seus potes. Em suas estantes.
Depois de engaiolar suas belezas, e de rotulá-las com etiquetas, e de organizá-las em suas ordens, as deixava lá, onde acreditava que deveriam estar. Perto de si. Ocultas, sempre. Apertadas. E de difícil acesso.
Curioso era o fato de nunca mais olhar, ou tocar, ou ouvir, sua bela coleção. Porque sabia que estavam lá, e de lá jamais sairiam. Desta forma, perdiam a cor. Suas belezas eram belas para todos, e ordinárias para ela. Sua rotina estava em descobrir mais e mais daquelas raras belezas, mas não delas desfrutar. A não ser uma só vez. A não ser a primeira.
E no passar dos anos, era cada vez mais difícil encontrar belezas que já não possuísse. O grotesco passou a ser belo, de forma a tapar sua lacuna de incompetência em encontrar a verdadeira beleza.
E ao chegar em casa, uma casa que possuía toda e qualquer beleza do mundo, deitava-se solitária, e feia.
Um belo dia, cinza e chuvoso, dia em que já não mais conseguia pentear seus cabelos ou escovar os seus dentes, ou costurar seus botões ou afiar seu lápis de olho, um belo dia, em um ataque de liberdade e de náusea, decide libertar toda a sua coleção.
Abre os potes, um a um, e olha seus interiores. Assiste aos filmes, um a um, e chora novamente, e ri. Ouve as músicas uma a uma, e dança. Borrifa seus perfumes, um a um, e sente, e lembra. Cozinha suas receitas uma a uma, e degusta, e gosta. Folheia suas fotos, uma a uma, e revive. Rele seus livros, um a um, e goza.
Depois, com uma dificuldade dolorosa, como a de uma mãe que lança seus filhos ao mundo, devolve a todos nós, mundanos, suas belezas. E num ato de bravura e dignidade, as oferece.
Ao voltar para casa, agora vazia, deita-se na cama, repleta de si mesma. E dorme um sono leve. E, depois de muito tempo, acorda com uma sensação estranha e confusa, e percebe, finalmente, que naquela noite, voltara a sonhar.
Levanta-se e sente o primeiro toque dos pés no chão, e vibra como uma tela em branco ao receber a primeira pincelada do que será uma futura obra de arte.
E descalça, e nua, sai outra primeira vez ao encontro do belo, mas apenas para sê-lo, nunca mais para tê-lo.

3 comentários:

Anônimo disse...

Du
Só a era de aquário nos fará novamente regozijar
por simplesmente SERMOS.
LIIINNNNNDOOOOOOOOO o seu texto.
Bjs
Dulce

Anônimo disse...

Lindo... amei!!
bjs cheios de saudades!!

Letícia Losekann Coelho disse...

Gostei demais dos teus escritos!
beijos