terça-feira, 18 de março de 2008

A Menina Angolana

Eu olhei para aquilo tudo e jamais me senti tão entusiasmada. Aquela caixa de madeira toda trabalhada, iluminada por velas ao redor, me transportava aos bosques dos contos de fadas, onde as flores cintilavam com o reflexo da lua no orvalho que nelas pendia. Imaginei aquelas pessoas todas, em suas vestes densas e olhares vazios, dançando em um grande salão de baile, em festa de reis e rainhas. O choro era de alegria, ou no máximo por um príncipe encantado que, desta vez, e apenas desta vez, não apareceu, deixando a donzela a observar a imensidão do mar, do alto de sua torre, à espera de seu grande amor. E foi assim, meu primeiro encontro com a morte.
Fui me aproximando da caixa reluzente, num passo sóbrio e cerimonioso, e pensei se seria desta forma que desfilaria pela nave principal da catedral, no dia do meu casamento. E pensando, hoje, talvez tenha sido tétrica a enorme vontade de rodopiar e gargalhar em gritos histéricos que pulsava dentro de mim, num ritmo sincopado aos meus passos. Me lembro de poucas coisas deste dia, mas jamais me esquecerei do rosto negro que dormia com calma dentro daquela caixa. E a única coisa que me espantou, foi vê-lo dormir, porque era ele quem, de costume, cuidava do meu sono.
Trabalhava em nossa casa, e me contava histórias de heróis para que eu adormecesse. E para que eu acordasse, apenas sorria, e deixava a luz do sol refletir em seus dentes brancos para que, assim, eu sentisse cócegas nas pálpebras e as deixasse abrir sozinhas. O toque de suas mãos no meu rosto costumava ser gélido, e seus olhos, fundos, de modo que, por mais que sorrisse, nunca me convencia de estar realmente alegre.
Mas naquele dia, em que em paz dormia, sua pele estava quente e macia, e seu sorriso, de lábios fechados, jamais tinha sido tão sincero. Eu sabia que Meu Preto estava feliz, e me sentia feliz com isso. O fado que eu ouvia ao fundo, misturado à música da missa que eu ouvia bem ao lado, foram dando lugar a um batuque profano, lá dentro dos meus ouvidos, e eu não pude deixar de reproduzí-lo naquela caixa, batendo forte com as mãos na madeira, e cantando tão alto, que abafei com meu fervor todos os sons de tristeza que pairavam naquela sala. Naquele dia, eu entoei o som verdadeiro do Meu Preto, que depois daquilo, não seria mais meu. E nem por isso eu entristecia, pois sabia que o mundo também merecia a alegria de tê-lo ao lado, a mesma que eu sentia, e a leveza dos sonhos que eu sonhava, quando ele me dormia. Depois disso, lembro que fui carregada para meu quarto, mas só depois de perceber, no rosto daquela negra, que era sua mulher, um enorme traço de paz, alegria e esperança.
E foi assim, meu primeiro encontro com a morte. Foi neste dia, que morri menina, e nasci mulher.

4 comentários:

Anônimo disse...

SOBEEEEEEEEEEEERRRRRRRRBO!!!!
A partir de hoje o “Negro dos Pesadelos” das minhas noites adolescentes pós guerra, das fugas de pernas paraplégicas, das câimbras, das muitas perdas, dos travesseiros molhados de lágrimas e suor, se transformou num “Preto DOCE E MUSICAL”.
Outros desafios virão, prometo que me conterei.
Como foi o Mesa para oito?
Bjs
Dulce

Candice disse...

Oi lindo
Feliz Pascoa pra vc tambem... Saudade! Mande noticias...
bjinhos

Candice disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ju Hilal disse...

Lindo texto Dudu.
Espero que a Dulce proponha outros desafios como esse.
Bjs