quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Metro IV

O jantar de terça-feira foi demasiado estranho. Estou com a pulga atrás da orelha. Realmente não sei se Michele é boa companhia para Sofia.
A amizade foi estranha, desde o início. Que amizade começa no dia de seu casamento? A delas começou, no dia do meu. Lembro de Michele na pista de dança, com seu vestido verde bandeira, vindo nos abraçar e congratular. Nenhum de nós dois sabia dizer quem ela era. Achamos, inicialmente, que estava de bico. Depois ela nos esclareceu ser a namorada do Rezende, meu vizinho de baia no escritório, que faleceu há dois anos. Foi comido por um tubarão na Praia Grande enquanto procurava conchas de madrepérola. Rezende colecionava conchas. Pobre Rezende. Mas o tubarão foi encontrado, foi morto, e Rezende pôde ser enterrado com honrarias e dignidade. Era lindo. O tubarão, não o Rezende. O Rezende era, Deus o tenha, feio de morrer. E morreu! Como age o destino, não?!
Mas voltemos ao jantar. Michele estava muito nervosa, meio persecutória. Olhava para os lados a todo momento, como se estivesse sendo observada. Sua reação ao roastbeef foi exagerada. Gemidos de prazer quase pornográficos a cada garfada. Muito bem, sei que caprichei no molho, mas não estava para tanto.
As duas ficaram bêbadas. As três garrafas do vinho chileno haviam acabado antes mesmo de eu pensar em servir o jantar. Tive de sair para comprar mais. Quando voltei, elas riam muito e me olhavam com certo estranhamento. Conferi minha roupa, cinto e sapatos, verifiquei meu penteado no espelho, chequei os dentes, os cantos dos olhos, o cheiro das axilas. Estava tudo em ordem, em perfeição. Do que riam, afinal? Não quis perguntar. Achei chato.
No meio do jantar, uma bomba. Descobri que Michele é casada. Nunca havia notado sua aliança, e só a percebi porque é idêntica à de Sofia. Rapidamente procurei nos dedos de minha esposa nosso elo, temendo que ela houvesse emprestado ou dado de presente a Michele. Mas constava intacta. Meu Deus, eu disse, vocês já notaram que têm anéis idênticos? Não é um anel, é uma aliança. Mas porque a Michele haveria de usar aliança? Por quê você acha? Acha que sou estúpida? Tenho cara de otária? Usaria uma aliança à toa? Sou casada! Desde quando? Desde sempre.
Há cinco anos conheço Michele. Em duas garfadas de roastbeef ao molho béchamel com cogumelos Paris e um gole de vinho entre elas, descubro que Rezende era um amante, que Michele havia se casado uma semana depois de mim, que Sofia foi ao casamento como acompanhante do Rezende para que não houvesse desconfianças do adultério e nem me comunicou, que o esposo de Michele se chama Kleber e que está nas Bahamas cultivando rabanetes, e que Sofia e Michele têm um gosto muito semelhante para jóias.
Pouco antes de eu ir dormir, Sofia narrava a Michele seu pesadelo da noite anterior. Mas narrava em sussurros. Pude ouvir que havia uma viagem, que alguém matava alguém com um espeto de frango, colocava o alguém morto numa sacola de barraca de camping e jogava ao mar. Havia algo com um restaurante em pleno alto mar, onde os carros deviam esperar o intervalo entre uma onda e outra para poder estacionar, onde as pessoas eram vistas apenas através de suas próprias luminosidades. Havia charuto, havia mafiosos, havia ressurreição do morto? Enfim, não pude entender. O barulho do jato d´água com o qual eu lavava a louça me impedia de escutar em detalhes. Fui dormir e nem ouvi Michele saindo, ou Sofia deitando.
Fizemos sexo de madrugada. Não sei dizer quem começou. Mas eu sonhava com caramelos, então deve ter sido Sofia.
Ontem não nos vimos. Ela dormia quando saí para trabalhar e dormia quando cheguei do trabalho. Nem pude entregar o presente que lhe comprei no caminho de casa. Não posso contar ainda, só depois. Vai que ela encontra este diário e descobre...
Hoje ela acordou mau humorada como o capeta. Bebeu chá de boldo no café da manhã, e seu suco de tomate de praxe, mas com pimenta dedo de moça em excesso. Saiu bufando e nem me disse bom dia. Pois eu digo. Bom dia, Sofia. Bom dia, meu amor. Que o frio de hoje te aqueça.

Um comentário:

Dulce Braga disse...

Isto está merecendo que se monte uma banca de apostas!;)